MEU PAI JOSÉ ARRUDA
MEU PAI JOSÉ ARRUDA
Wanderlino Arruda
Faço contas nos minutos e horas da minha vida, revejo esmaecidas ou vivas imagens, tento magnificar pequenos acontecimentos e, pronto, a figura de José Arruda, meu pai, se põe sonora e colorida à minha frente. Convivência de várias décadas, disciplina rígida no início, amenos conselhos em meio e fim de vida, sempre marcante influência. Mais do que tudo um rigoroso exemplo de honestidade a qualquer tempo, seja em temporada de quase opulência, seja nas dobras do passar de tempos em adversidade. Era um viajante faminto de estradas, sempre saindo e chegando: a cavalo, em fordinhos, em caminhonetes e caminhões, em velhas jardineiras ou em ônibus já quase modernos.
Lembranças mais antigas? Ele com um bule esmaltado azul, despejando o café num copo grandão, também esmaltado e de asa. Com o café, comia alegremente biscoito fofão, rosca caseira e o cuscuz que Silvina tinha de levantar bem cedo para fazer. Nos dias de frio ou de chuva, saia do quarto já com uma capa colonial pesadona, tão comprida que passava dos joelhos. Aos sábados, atrás do balcão da loja sortida de tudo, atendia os fregueses, vestindo um casaco de pijama, que achava a coisa mais chique do mundo. Lembro-me até da cor, um cinza esverdeado com desenhos em relevo, um bolso para caneta e lapis e dois outros para as tesouras. Nem no horário do almoço parava de vender. De cada amigo que atendia havia estórias para ouvir e contar. Aprendi ali as minhas primeiras lições de vida. Como morávamos em frente ao mercado, dava para ver até o fim da tarde, a feira cheia de carros de bois e de cavalos com cangalhas sem bruacas, segundo diziam a mais rica da região.
Homem em tudo avançado no tempo, minerador de pedras e pepitas de ouro nos garimpos da redondeza, descobria também todas as novidades que São João do Paraíso nem podia sonhar. Já em 1938, meu pai tinha máquina de escrever, geladeira a querozene, lampião Aladin, aparelhos de gilete, uísque Cavalo Branco, casemira Aurora, camisa de colarinho trubenizado, barbeadores com gilete já cortando dos dois lados. Quando de folga, lia em voz alta um livro de geografia com perguntas e respostas e ouvia um radio de bateria, que fazia mais ruído que um noite de tempestade. Em quarenta e dois, quando fui para a escola do professor Rolla, todo o meu material escolar, inclusive a ardósia, era importado, com o “made in Germany” ou “made in England” me dando agradável sensação de importância, compensando até a minha pouca habilidade no mergulho no rio e nas bolinhas de gude.
Claro que as invenções do senhor José Arruda não ficavam só nos objetos de consumo e exibição. Era comprador e vendedor de peças de ouro, pedras preciosas, moedas, velhos relógios de parede, desenhos de nanquim, todo tipo de relíquias e quinquilharias, incluindo aí punhais de bronze e de prata. Foi minucioso o seu planejamento e realização da nossa primeira viagem de turismo: preparou, com absoluto conforto e decoração, um enorme carro de bois, com um guia andando a pé, que nos levou – ele, minha mãe, Nair, Derci e eu – para uma visita a Condeúba, na Bahia, onde ficamos hospedados numa casa de três moças muito bonitas e de fino trato. Foi lá que minhas irmãs e eu experimentamos pela primeira vez o gosto de azeitona e leite condensado… Pelo menos duas vezes por ano, fazíamos viagens às fazendas dos velhos Vicente Arruda e João Morais, quando nossas avós Senhorinha e Ritinha se desdobravam em ordens para o capricho das cozinheiras no fogão a lenha e no forno. Para as visitas a melhor galinha ao molho pardo e o melhor bolo de farinha de trigo ou de mandioca puba, coco ralado por cima.
Quando moramos em Coqueiros, foi grande a sua luta para que eu aprendesse a tocar cavaquinho. Chegou a contratar um professor particular com várias horas de aula por dia. Mas não passei da primeira posição, aquela em que a gente firma as cordas com os dedos da mão esquerda e sacode os da direita para tirar os sons do “besta-é-tu”. Valeu, porque aprendi o do, ré, mi, fá, sol, lá, si, tornando-me quase um intelectual em música. Foi voltando de Coqueiros para o São João, em 1941, que vimos e ouvimos passar o primeiro avião, um barulho de assombrar todo tipo de viventes. A notícia que correu depois é que haviam morrido duas pessoas: um rapaz correndo de medo, caiu numa cisterna, e uma velhinha que, assando biscoitos, resolveu se esconder dentro do forno em brasa. Duas vítimas do progresso dos tempos de guerra…
Agradeço muito a meu pai por todo tempo de convivência direta e indireta: das jabuticabeiras que ele arrematava para a gente chupar jabuticabas até fica entupidos, dos balaios de marmelo maduros e cheirosos que trazia das viagens ou comprava na feira, das casas com quintais grandes que ele comprava para vivermos divertindo. Agradeço mais ainda dos seus sonhos de conhecer mundos distantes, tão bem transmitidos aos filhos que hoje realizam o que ele não pôde realizar!
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